Ryan Murphy já pode ser perdoado. Um dos criadores mais prolíficos da TV estadunidense atual, o diretor, roteirista e faz tudo deixou sua marca em séries como “Nip/Tuck”, “Glee”, “American Horror Story” e tantas outras. Uma característica comum a elas: o exagero narrativo passando por cima da coerência e das personagens em produções que começam bem, mas se perdem na repetição.
Diante da trajetória de Murphy, o que esperar então de um programa que explora o universo dos bailes de Vogue na Nova York do final dos anos 1980? Muito glitter, paetês, música e batalhas na pista. Mas “Pose” é mais do que isso. A série é, na verdade, o veículo perfeito para a afetação do Midas televisivo. E os cenários coloridos, as personagens melodramáticas e a música contagiante marcas registradas de Murphy são fundamentais para o seu sucesso.
Assim de longe, “Pose” parece uma dramatização simplista do documentário “Paris is Burning”. Mas Murphy pega essa referência e usa a contextualização como um de seus principais elementos: o sucesso sendo representado por Donald Trump; a homofobia/transfobia da época ditando a vida das personagens; e o fantasma da AIDS cercando a comunidade GLS (para usar a sigla vigente na época). Além de usar e abusar da música e indumentária dos anos 1980, a série explora esses temas e aproxima a trama de uma outra criação de Ryan Murphy, a também ótima “The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story“.
A trama é simples e mostra, basicamente, a batalha de egos entre duas casas: a bem-sucedida House of Abundance, comandada pela arrogante e mesquinha Elektra Abundance, e a novata House of Evangelista, cuja mãe, Blanca Evangelista, é ingênua e idealista. É a partir dessa disputa que a série desenvolve sua história e mostra como essas personagens transsexuais e gays usam os bailes como válvula de escape para fugir de uma vida ordinária cercada por preconceito e medo.
Entre erros e acertos, em apenas oito episódios, “Pose” segue várias linhas narrativas. Elektra Abundance quer ser uma mulher de verdade e fazer a cirurgia de transição de gênero (em plena década de 1980, quando esse termo ainda nem existia), mas teme em perder o “amor” do seu homem. Angel se divide entre a vida real como prostituta e dançarina em peeps shows e o sonho de ser salva por um “Príncipe Encantado”. Blanca enfrenta o HIV e o preconceito da família e da própria comunidade gay para realizar o sonho de ser uma mãe, como eram chamadas as “donas” das Houses. E Damon é expulso de casa e segue para a cidade grande para viver o sonho de ser bailarino.
Ainda que o roteiro crie situações episódicas que nunca se desenvolvem (Blanca tentando entrar em um bar gay para mostrar que a comunidade GLS precisa ser unida ou se apaixonando por um cara que já pegou todas, por exemplo), a direção é delicada e usa o melodrama na medida certa para mostrar os altos e baixos das personagens. O resultado é honesto e emocionante, mesmo que, na essência, o mote da “busca pelo sonho” que move a série seja um tanto clichê.
O ótimo elenco também compensa as eventuais escorregadas e exageros da trama. Dominique Jackson (Elektra) e Indya Moore (Angel) são os destaques em meio a poucos nomes conhecidos: Evan Petes, Kate Mara e James Van Der Beek são os únicos atores brancos e heterossexuais da trama. Aí reside outro fator de relevância da série: “Pose” aposta no protagonismo e representatividade ao humanizar e colocar na frente das câmeras personagens antes à margem da sociedade e vistos apenas como tipos. Sim, Ryan Murphy merece ser perdoado.