
Não é todo filme que sobrevive a um diálogo como “Ele tem um dos ânus mais icônicos”. “A Pior Pessoa do Mundo” não só faz isso com louvor como é um dos meus filmes preferidos de 2021. O longa é quase uma comédia romântica moderna, alinhada aos tempos atuais em que homens e mulheres, supostamente, não precisam mais se limitar a papéis impostos pela sociedade.
Acompanhe Esse Filme que Passou Foi Bom também no Instagram
Mas “A Pior Pessoa do Mundo” vai muito além do rótulo de um tipo de filme e se transforma em uma reflexão sobre a nova geração de jovens que está chegando à vida adulto e sobre os tempos atuais em que tudo precisa ser correto. Uma espécie de Frances (do ótimo “Frances Ha“), Julie é uma jovem inteligente, mas que trabalha em uma livraria e não sabe muito bem o que quer fazer da vida, pulando de paixão em paixão (de assuntos a possíveis profissões, de hobbies a homens) sem nunca olhar para trás.
Prestes a completar 30 anos, ela se apaixona por um cartunista mais velho na casa dos 40 anos cujos amigos já têm filhos e a vida supostamente resolvida. Pressionada pela segurança financeira e pela vontade do namorado de ter filhos, Julie começa a questionar a relação e acaba se apaixonando por um outro homem que ela conheceu como penetra em uma festa de casamento (em uma das não-traições mais bonitas do cinema).
Narrado em 12 capítulos, epílogo e prólogo, a premissa de “A Pior Pessoa do Mundo” parece com a de vários outros filmes de encontros e desencontros amorosos, com uma jovem protagonista funcionando como uma Amélie Poulain às avessas com mais dúvidas do que certezas. Mas o diretor e roteirista Joachim Trier não quer fazer uma mera comédia romântica geracional que ficará datada em alguns anos.

Ao invés de optar pelo caminho mais fácil do conto de fadas, Trier escolhe a honestidade e cria um filme belo e original, cruel e delicado, emocionante e verdadeiro sobre como pessoas entram e saem de nossas vidas deixando marcas e feridas, boas e más lembranças, corações partidos e palavras doídas que soam da pior forma.
Leia também: Trilogia involuntária: Clube dos Corações Indies Solitários
Lindamente filmado, com ritmo, uma trilha sonora foda e uma certa beleza plástica* que enche as cenas de frescor e sentimento, “A Pior Pessoa do Mundo” é um poço de honestidade, tratando temas bastante caros ao cinema sem rodeios ou apelos dramáticos baratos. O longa funciona quase como um abraço apertado no público, seja os espectadores dessa nova geração que luta pelo correto, mas não sabe direito o que quer da vida, seja a geração mais velha que se apega à nostalgia diante de um mundo que não é mais o seu**.
Além da direção envolvente e do roteiro certeiro de Trier, o longa ainda tem a sorte de ter a maravilhosa Renate Reinsve como protagonista. Sem medo de criar uma personagem falha e, às vezes, egoísta, Reinsve (que venceu o prêmio de melhor atriz em Cannes em 2021) é uma revelação, uma força da natureza com olhos marcantes e um rosto expressivo que revelam simplesmente tudo o que a personagem sente, deixando o público muitas vezes desconcertado diante da espontaneidade de sua atuação.

Com diálogos fortes e sensíveis e atores que criam personagens reais e carismáticos, mesmo quando eles estão trocando os pés pelas mãos e magoando as pessoas que amam, “A Pior Pessoa do Mundo” (que, infelizmente, perdeu os dois Oscar que concorria: filme estrangeiro e roteiro original) é um desses filmes originais que pede por novas visitas. Cheio de cenas encantadoras e difíceis, o longa é um desses raros exemplares que ficam para a vida toda.
Para saber onde ver os filmes, pesquise no JustWatch
*O momento mais bonito do longa, uma cena cheia de energia e ingenuidade, é quando Julie para o mundo para encontrar a nova paixão.
** A conversa entra Julie e o ex-namorado é um tiro de melancolia no peito, um soco no estômago de quem já passou dos 40. Completamente desarmado, ele (o também ótimo Anders Danielsen Lie) fala sobre suas frustrações e medos em relação ao novo mundo do politicamente correto e de novas tecnologia que o tornaram uma pessoa obsoleta [o diálogo em si me lembra muito uma cena de “Ela”, quando o personagem de Joaquim Phoenix fala para a IA Samantha que tem a impressão que já sentiu tudo na vida e, agora, todas suas emoções parecem cópias das passadas].
Leia também:
Sempre em frente
Águas Profundas
Licorice Pizza