O Milagre

Assim como na minissérie “Scenes from a Marriage” (dirigida por Hagai Levi), o cineasta chileno Sebastian Lelio começa “O Milagre” revelando os bastidores do filme. Não demora muito, no entanto, para o espectador esquecer a realidade dos aparatos por trás de uma produção cinematográfica e embarcar na história de uma enfermeira contratada para vigiar uma garota que sobrevive há meses sem comer nada.

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Caprichando na ambientação e em uma encenação que fica entre o teatral e o experimental, Sebastian Lelio (de “A Mulher Fantástica”) usa a trama para refletir sobre a sociedade moderna perdida entre os fatos e a fantasia. Ainda que se passe no século 19, a história de “O Milagre” diz muito sobre nossa sociedade atual, perdida entre fake news e o desejo de acreditar em narrativas mentirosas e conspiratórias em prol de crenças e ideologias disfarçadas de “cada um tem sua opinião”.

Mas “O Milagre” não funciona apenas como metáfora e é também um belo filme que constrói uma narrativa envolvente usando como base a dicotomia entre fé versus ciência. A ótima Florence Pugh (bem melhor aproveitada aqui do que em “Não se preocupe, querida”) vive uma enfermeira inglesa contratada por um comitê de homens irlandeses para observar a garota. Afinal, ela é um milagre ou uma farsa?

O filme nunca embarca realmente na questão porque a verdade está na cara de todos, ainda que alguns prefiram não vê-la para alimentar suas próprias verdades. O “mistério” por trás de toda a dúvida também não chega a surpreender ninguém, mas o cineasta chileno tão pouco se importa em criar suspense em cima de possíveis reviravoltas.

Lelio está mais interessado em explorar os recursos que o cinema lhe oferece para conduzir um belo exercício narrativo cheio de clima e imagens poéticas. Por vezes, o diretor parece estar filmando um longa de terror, emoldurada pela bela fotografia claustrofóbica de Ari Wegner (“Ataque dos Cães”) e embalada pela trilha sonora quase dissonante de Matthew Herbert (colaborador de Lelio em “A Mulher Fantástica” e “Desobediência”). Em outros momentos, “O Milagre” parece uma versão menos histérica da peça “As Bruxas de Salem”, com as duas narrativas compartilhando vários elementos em comum, como o bom senso sendo soterrado pela fé e pela teimosia dos homens.  

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Ainda que a atmosfera do longa fuja de uma abordagem mais convencional de um filme de época, o que pode desagradar grande parte do público, “O Milagre” é mais um ótimo exemplo do cinema poderoso de Sebastian Lelio. Infelizmente, a Netflix não tem dado ao longa a pompa que o streaming geralmente dá aos seus candidatos ao Oscar (uma burrada, porque o longa é bem melhor, por exemplo, do que “Bardo”, que chega essa semana aos cinemas antes de estrear na própria plataforma). “O Milagre” merecia o poder da tela grande, não ficar perdido no meio do mar de conteúdo da Netflix.

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