No geral, eu amo o cinema de Hollywood e sou cria do cinemão dos grandes estúdios. Mas em um mar de filmes sem graça e continuações/remakes desnecessários, esse ano os meus filmes preferidos são praticamente todos “estrangeiros” (leia-se não hollywoodianos). Ainda no âmbito audiovisual, a TV anda bem mais interessante que o cinema. Então eis o que mais me marcou esse ano.
Filmes
Ad Astra – Não existe imagem mais bonita para se ver na tela grande do que um homem vagando pelo espaço. Imaginem então quando essa imagem é capturada por um dos deuses do cinema como o James Gray. Não importa que a história aqui não seja nova e ecoe várias outras sci-fi. Gray deixa de lado a ação e a escala épica e está mais preocupado em criar uma viagem contemplativa e intimista emoldurada pelo rosto do Brad Pitt, uma narração em off poética e uma trilha sonora melancólica, inundando a tela em beleza, luz, solidão, vazios, buscas, esperança e lágrimas. Hollywood ainda sabe fazer grandes filmes.
Assunto de Família – Palma de Ouro em Cannes, o longa pega o conceito de família tradicional e joga sem pena no ventilador. Apesar dos personagens se chamarem de vovó, mãe, pai, irmão e irmã, o roteiro nunca deixa muito claro qual a relação entre eles, preocupando-se apenas em mostrar o que os une: o amor. Fica fácil então (mesmo com o ritmo um tanto lento para quem está acostumado com a narrativa hollywoodiana) acompanhar as peripécias dessa família disfuncional em meio a um Japão miserável bem longe das luzes de neon e modernidade vendidas pelo país. A delicadeza e o tom leve da primeira parte, no entanto, dão lugar à crueza da realidade, que passa como um trator em cima de uma felicidade genuína, espontânea e contagiante.
Border – Um dos males de assistir a filmes demais é perder a sensibilidade, ficar meio indiferente. Ganha-se senso crítico, mas muita coisa perde o sentido e passa a dizer absolutamente nada. Dai vem um filme como esse e te tira completamente dessa posição “confortável”. Mistura de suspense com romance, fantasia e bizarrice, o longa é completamente fora da caixa, desconfortável e fascinante, delicado e grotesco, tudo ao mesmo tempo. É o filme mais estranho e WTF que vejo em muito, muito tempo.
Cafarnaum – Esse filme libanês se divide entre a poesia e a tristeza. De um lado, a cineasta Nadine Labakif filma tudo com uma certa beleza e plasticidade. Mas, por outro, a narrativa deixa a “coméstica da fome” de lado e aposta na crueldade e dureza de uma trama que beira à desesperança. Em um mundo que ainda dita que a regra é ter filhos, o longa libanês pergunta o que qualifica uma pessoa a tê-los. A resposta mais simplista seria, claro, ter condições financeiras para criá-los, mas a produção não se atém a soluções tão superficiais e prefere focar no olhar do menino Zain, mais responsável do que todos os adultos do filme. No final, o longa é um grande tiro de desolação no peito disfarçado de cinema, ainda que a imagem que o encerra pareça provar o contrário.
Ford vs Ferrari – Um dos poderes do bom cinema é pegar um tema que não te interessa em nada e mesmo assim transformá-lo em algo que te emociona. É o caso desse filme que gira em torno de automobilismo dirigido lindamente pelo James Mangold. Em seu melhor trabalho, o diretor usa o tudo o que Hollywood tem a oferecer para criar um espetáculo que é puro entretenimento. Os recursos estão todos lá no lugar certo (um design de som dos deuses, uma edição precisa, uma trilha sonora certeira, um elenco carismático com uma ótima química entre Matt Damon e Christian Bale) em prol da história envolvente e de uma produção de encher os olhos.
Mandy – Que porra de filme mais maravilhoso e maluco esse “Mandy”. O diretor e roteirista Panos Cosmatos (o mesmo do igualmente destrambelhado “Beyond the Black Rainbow”) mistura o nonsense de David Lynch, a estética neon de Nicolas Winding Refn e a sede por vingança de Quentin Tarantino nesse exercício de estilo e terror que se transforma em explosão sensorial de violência sem muita pé nem cabeça. Visualmente, o filme é um deslumbre de luzes piscando e sangue jorrando. Narrativamente, é uma loucura que mistura religião, criaturas demoníacas, muitas mortes e uma briga de serras elétricas, provando no meio do caminho que Nicolas Cage ainda tem muito a oferecer ao cinema.
Retrato de uma jovem em chamas – Que filme francês belíssimo! A diretora e roteirista Céline Sciamma cria um longa soberbo sobre um romance impossível, entregando uma produção simples e de encenação contida que explode delicadeza e sensualidade ao narrar a paixão de uma pintora por seu objeto. São trocas de olhares e pequenos gestos que ganham mais impacto graças à sensibilidade do roteiro e ao talento de duas atrizes que dominam a tela. O ritmo pode ser um tanto lento, mas é necessário para o desenvolvimento das personagens e da abordagem por vezes contemplativa e detalhista. Ainda é lindo de ver.
Outros filmes que me marcaram: a volta de Pedro Almodóvar à boa forma em “Dor & Glória”; o coreano “Parasita”; o nacional “Bacurau”; a melhor animação do ano, “Homem-Aranha no Aranhaverso”; e o drama de divórcio da Netflix, “História de um Casamento”.
Na TV
Muito se questionou sobre a verossimilhança da história contada por essa excelente minissérie da HBO. Verdade ou exagero, a produção é impecável e transporta o espectador para a União Soviética de meados dos anos 1980, quando uma das ogivas de uma usina nuclear explode sem razão e apavora o mundo. Além da ótima recriação de época, a minissérie acerta ao tentar buscas respostas sobre o que aconteceu e, ao mesmo tempo, criar uma trama que mistura muito bem drama, suspense e terror. É assustadora, emocionante e um exemplo de uma história bem contada.
Curtíssima e direta ao ponto, essa série prova o talento de Phoebe Waller-Bridge como escritora e atriz. A personagem criada por ela é amável e odiável na mesma medida e vai se relevando a cada episódio. Ora cômica, ora melancólica, essa série de duas temporadas da Amazon Prime é genial ao deixar os estereótipos de lado e abraçar a quebra da 4a parede com inteligência e bom humor. Desse tipo de programa que dá vontade de ver e rever infinitamente.
E se o futuro distópico que tanto tememos já estivesse aqui entre nós sem nem mesmo percebermos? Esse é o mote dessa minissérie da BBC/HBO que mostra que nosso futuro não é nada esperançoso. A trama avança no tempo, de 2019 até 2030 e poucos, para mostrar que nada pode dar certo diante dos problemas que temos enfrentando atualmente. Imigração, desemprego, descrença política e avanços tecnológicos estão mudando o cenário politico, econômico e social e, de acordo com a minissérie, o resultado é simplesmente assustador.
Em meio a decepções como o final de “Game of Thrones” e os retornos de “Big Little Lies” e “The Handmaid´s Tale”, outro bom destaque foi a minissérie curtinha “A Very English Scandal” e a ótima “Unbelievable”, da Netflix, que poderia ser uma obra-prima se a minissérie fosse um pouco mais ousada esteticamente (independente disso, as três atrizes estão maravilhosas: Kaitlyn Dever, Toni Collette e Merritt Wever).
No Youtube
The National (I Am Easy To Find) – O novo álbum do The National ficou lindamente foda com a mistura de vocais femininos com o vozerão do Matt Berninger. Para marcar o lançamento do álbum, a banda chamou o cineasta Mike Mills (dos lindos “Toda Forma de Amor” e “Mulheres do Século 20”) para criar um curta com base nas canções, resultando em uma experiência emocionante em que a música é coadjuvante e está a serviço das imagens e da narrativa. A “história” não traz nada de novo (a vida de uma mulher do começo ao fim), mas é extremamente emocionante e repleta de belas imagens e de uma abordagem para lá de poética. São 26 minutos de uma vida normal acontecendo à nossa frente em um preto & branco dos deuses intercalado por telas coloridas. É simples, comovente e marcante, em especial a atuação da Alicia Vikander. Quanto ao álbum, está ali junto com o “High Violet” como um dos que mais amo na vida.
Destaque ainda para o curta “Anima”, do Thom York, e para os clipes do álbum novo do Chemical Brothers.